quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O jardim do Ayslan

Uma das memórias mais ternas que eu tenho da minha vizinhança (e talvez a única para a qual eu empregaria este termo) é de quando eu trabalhava por aqui mesmo, e podia ir a pé para o trabalho. Geralmente, em manhãs sem chuva, bem no meio do meu trajeto, eu passava por uma curva na Marine Drive, onde há um gramado que fica entre o asfalto e o Parque Klahanee. E lá estava o Ayslan, trabalhando em seu jardim.

O Ayslan é um senhor com jeito de aposentado, bem "simprão", que fala alto, cheio de vitalidade e de simpatia, que depois eu me lembrei de ter cruzado muitas vezes no mesmo caminho, em dias chuvosos, quando ele não trabalhava no jardim, mas fazia uma caminhada, debaixo de chuva mesmo, ao McDonald's local para comprar um copo de café. Realmente, um sujeito que não gosta de ficar em casa. E sempre nos cumprimentávamos. Algo raro estranhos se cumprimentarem aqui. Assim, já nos havíamos tornado conhecidos, mesmo sem conversar ou trocar nomes. E agora, enquanto escrevo, me toquei de que, na verdade, nunca trocamos nomes. Eu sei o nome dele porque, numa das minhas passagens pelo jardim, eu reparei que havia um artigo de jornal plastificado pregado num toco de árvore, e aquele era um artigo sobre o Ayslan e seu jardim, que havia sido publicado pelo jornal local.

Eu não sei muito sobre ele, mas já conversamos animadamente por muitas vezes, naqueles poucos minutos, nas várias manhãs em que eu parava para fazer algum comentário ou ele mesmo me parava para dizer alguma coisa na esperança de receber alguma opinião ou apenas para papear mesmo. Eu sempre o admirei por empregar seu tempo livre daquela forma - adotando um gramado e tranformando-o num microcosmo de formas e significados todo dele, um jardim cheio de personalidade, não apenas mantendo a parte de jardinagem que a prefeitura já havia feito, mas também enchendo-o de pedras harmoniosamente arrumadas, objetos decorativos, estátuas e outras coisas que parecem antiguidades e se integram bem ao ambiente, de forma muito original e visível, mas sem realmente saturá-lo. Eventualmente, ele cometia alguns excessos, como uma vez em que ele fez uma réplica de túmulo e me explicou que aquilo era um "recadinho" para o pessoal metido a besta lá de West Vancouver, sobre a efemeridade da vida, com uma crítica à frivolidade e à pretensão (palavras minhas). Eu achei aquilo muito sincero e novamente admirável. O falso túmulo ficou um pouco filosófico demais para o jardim, e depois ele o retirou. Mas o jardim ainda está lá, e muito bem mantido - como sempre, muito embora eu não veja o meu gentil, falante e simpático amigo jardineiro e pensador há muito tempo.





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