Eu sou um expatriado voluntário, uma pessoa que, como muitas outras, deixou o Brasil, por razões que nós genericamente e de forma academicamente incorreta chamamos de “falta de civilização”. Mas eu nunca duvidei que a nossa falta de civilização fosse, na verdade, falta de características que estão no cerne do que é ser ocidental.
Uma, vez, durante uma aula de faculdade aqui, numa classe cheia de asiáticos (os mais visualmente não-ocidentais), uma professora, enquanto falava de valores ocidentais e relações interculturais, virou e me perguntou: “E os brasileiros, se consideram ocidentais”? E eu, de forma muito surpresa e até um tanto ofendido respondi, na minha arrogância latina: “Mas é claro que sim”! Isso, enquanto pensava comigo: “O que esta norte-americana alienada que não conhece nem o mapa-mundi sabe para me fazer uma pergunta primária e estúpida dessas?”
Hoje eu sei, e entendo pq a pergunta foi coerente. Para explicar, tenho que dizer que eu sou um estudioso da Grécia Antiga, em seus vários aspectos, já há muitos anos, mas só mais recentemente, devido a estudos mais cuidadosos, eu comecei a entender em que sentido os gregos antigos realmente fundaram a cultura e a civilização ocidental. Muito além de suas geniais manifestações artísticas, filosóficas, científicas e esportivas, tão bem conhecidas (ou não) das pessoas em geral, os gregos criaram o conceito de “cidadão”, aquele que é responsável pela defesa de sua nação, através da obediência e defesa de suas leis. Exemplos magníficos não faltam, como no caso de Sócrates, que preferiu a morte a se rebaixar a pedir perdão por um crime não-cometido ou a simplesmente fugir de sua cidade, mostrando deste modo, seu total respeito a seus próprios princípios e também às leis da cidade que o estava condenando à morte, e injustamente, ainda por cima! Há também o exemplo dos 300 nobres e ricos espartanos que marcharam rumo à morte certa, para deter, ainda que por pouco tempo, a invasão persa – e onde eles foram sepultados, hoje não se lê nada com referência a glória ou heroísmo, mas sim, com referência à proteção das leis, que numa tradução livre seria: “Vá, viajante, e diga aos espartanos que aqui nós jazemos (mortos), defendendo suas leis”. E mais nada.
Pois bem, depois de estudos e reflexões mais aprofundadas, eu entendi, na teoria, o que é ser “civilizado” ou, mais corretamente falando, “ocidental”, que consiste não em ser de origem européia, cristão (ou laico) e capitalista, mas também no real respeito às leis, que são emanadas pela sociedade, através de forma legalmente prevista, na busca do tal “bem comum”, que virou chiclete na boca de juristas e políticos, enquanto é totalmente desrespeitado no dia-a-dia, por todos, mesmo as chamadas “pessoas de bem” que se dedicam a ser “espertas” e a quebrar pequenas regras, algo considerado “inofensivo”. Ah, o tal “bem comum”, para quem não sabe, pode significar muitas coisas, como bem-estar social, dignidade, respeito às liberdades individuais, à justiça, ao bom funcionamento do Estado, etc.
Mas e o milkshake? Bom, foi um milkshake que me fez ver e sentir o que é ser ocidental na prática, nos dias atuais, já tão distantes da Grécia Antiga e seus bravos cidadãos-guerreiros (na época conhecidos como “hoplitas”). Estava eu hoje saindo de uma estação de barcos, quando um rapaz, de traços asiáticos, mas claramente não-estrangeiro, deixou cair um copo de milkshake no chão, e continuou andando. Nisso, um senhor já sexagenário, de forma muito enérgica, pega o copo do chão, chama o rapaz, enfia-lhe o copo no peito e diz: “Existe uma lata de lixo lá na frente”. O rapaz, acompanhado por outro, muito grande e forte, responde (rindo): “Quem você pensa que é”? No que o senhor de cabelos brancos diz: “Me provoque, que você descobrirá”.
Uma emoção muito forte tomou conta de mim naquele momento. Eu me lembrava do Brasil e considerava quem se importaria ou se arriscaria ao ridículo ou à agressão física por conta de um copo de papel. E que importância isso teria num mundo tão conturbado? O rapaz apenas jogou lixo num lugar público, “que não pertence a ninguém”. Ao mesmo tempo me lembrei do que é ser cidadão, na defesa sua polis e suas leis do ataque dos bárbaros, que as destroem, e com elas levam tudo que foi construído pelas gerações anteriores para o ralo, o caos e a desgraça. E que o desrespeito a uma lei “boba” leva à impunidade, à indiferença, e ao desrespeito de leis “importantes”, que são a base de tudo que nós poderíamos ter enquanto civilização bem-sucedida, rica, justa e promissora. Foi então que eu vi, na minha frente, o que é ser cidadão; e, imediatamente, pela primeira vez na minha vida, eu me dispus ao combate físico, numa discussão que eu não havia começado. Coloquei-me ao lado daquele senhor, esperando qualquer ataque por parte dos “bárbaros”, o que não aconteceu. Não fiz aquilo na defesa de um “pobre velhinho”. Não! Fiz aquilo para me colocar no lugar que eu sempre quis para mim, ao lado de um concidadão, cumprindo uma obrigação sublime, o que sempre me foi negado. Pela primeira vez, me senti um hoplita, na defesa da polis e suas leis, não apenas de espírito, mas também na prática.
Por que nunca fiz isso no meu distante Brasil? Porque lá nós não somos ocidentais, nem cidadãos (no sentido clássico da palavra) e não temos coragem e nem disposição de sê-lo, por falta de valores e de inspiração. Acatamos a desordem e a bandidagem, que nos governa. Sem falar na chance de levar um tiro e ninguém ficar sabendo realmente das minhas razões. Passar por maluco, “sem juízo” ou encrenqueiro. Sacrifício em vão, por quem não merece. Como se diz, “melhor deixar quieto”. Os gregos de 2500 anos atrás ririam de nós. Provavelmente nos chamariam de “bárbaros”, “escravos” ou “efeminados”.
Fim da história: o copo foi parar no lixo, pelas mãos do próprio “bárbaro”, que continuou a pé, sem mais bravatas, com seu amigo brutamontes. O velho hoplita entrou em seu ônibus, de forma altiva e determinada, como deve fazer um cidadão, sem nem perceber que eu tinha estado ali, no front, formando fileira com ele. E eu, o iniciante, fui para o meu ônibus, feliz e realizado. (Out/2009)
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